Autocriação

sábado, 13 de março de 2010

por Josy Antunes

A Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu abriu as portas no início dessa semana para um novo semestre de atividades no horário integral. Alunos provenientes das Escolas Municipais Ana Maria Ramalho e Janir Clementino estão distribuídos em quatro turmas, tendo em média 20 membros cada. Na nova metodologia adotada, a ideia do “eu” será desenvolvida por eles durante todo o ano. E a primeira etapa demandou muitos dedos sujos de tintas coloridas e liberdade de criação: era a produção de auto-retratos.

A gente quer chegar em algum lugar, só que antes tem um processo”, principia Veruska Thaylla, coordenadora das aulas do Bairro Escola na ELC. “Eles vem pra aprender cinema, sendo que eles chegam fazendo artes. Queremos linkar todas as coisas com o audiovisual. Não necessariamente já chegar, pegar uma câmera e sair fazendo filme. É toda uma preparação”, explica ela.

Assim como quando foram trabalhados os contos de Câmara Cascudo, no ano passado, o resultado do processo citado por Veruska se apresentará em filmes. A partir dos contos, cada turma realizou um curta, surgindo adaptações de “O velho ambicioso”, “O bem se paga com bem”, “Mata sete” e “O mendigo rico”. Já a nova ideia, prevê a produção de um filme por aluno, onde possa ser visto o “eu” de seu autor, trabalhando todas as formas de auto-retrato. “O que a gente pensa é que em nenhum momento se mostre o rosto das crianças, mas fazer em cima desses auto-retratos, de objetos de casa, criando uma estrutura que ele conte como ele é, mas de uma forma que ele mesmo não apareça”, aclara Veruska.

Para guiar as turmas pela nova gama de experimentações, a ELC convidou o professor de artes Raphael Couto, que vêm trabalhando os conceitos artísticos inseridos no auto-retrato. Esse primeiro período terá a duração de 2 semanas, para então ser renovado por novos orientadores convidados, que introduzirão conceitos mais técnicos. “A primeira coisa que eles percebem é a dimensão do seu próprio corpo”, relata Raphael, sobre as percepções que os exercícios trazem por consequência. “Ás vezes eles sabem 'eu tenho 1,60 metro', mas não sabem o que isso significa em ocupação de espaço”.

Partindo da consciência de sua forma e tamanho, os alunos logo percebem que não podem criar uma representação física fiel e que eles podem ser livres para se auto-projetarem conforme seus gostos, por exemplo. “Já teve casos de se pintarem como astronautas”, destaca o professor, que tem a companhia dos mediadores Bion, Carol, Marina e Leandro, formando duplas e dividindo-se pelos dias da semana.

“Os alunos ganham também uma percepção de composição”, afirma Raphael. Segundo ele, nas escolas, geralmente, são oferecidos espaços menores para atividades artísticas, criando uma espécie de limitação criativa acarretada pela timidez. No entanto, o primeiro exercício proposto na ELC fugia de qualquer regra de conduta e moderação. “Essa liberdade também é interessante pra eles. Isso faz parte da coordenação motora e da percepção espacial. Só tem a acrescentar pra eles”, justifica Raphael, concluindo: “A gente percebeu que por mais que a gente ofereça materiais variados pra eles trabalharem, a ideia de mexer com tinta acaba sendo a que mais chama atenção. Desde os pequenininhos, os de 8 anos, até os mais velhos, de 14 anos, já ficam nessa euforia de trabalhar com tinta”.

A aula de ontem se iniciou num círculo formado no interior da sala de animação. Alunos e mediadores pensavam, repensavam e discutiam sobre o que é um auto-retrato. “E um retrato? Qualquer foto é um retrato?”. Indagações como esta foram feitas e muitas resposta surgiram até que chegassem a seguinte definição: “Toda imagem que eu construo de uma pessoa é um retrato, seja ela um desenho, uma foto, uma escultura...”, fixou Raphael Couto, que também ministra aulas de artes em Itaboraí e São Gonçalo.

Antes de retomarem ao trabalho iniciado na última quarta-feira, os alunos foram alertados pelo professor sobre os cuidados que deveriam tomar com suas pinturas, que possuíam o tamanho real de seus autores. “O auto retrato não é a imagem da gente? Imagina se eu mostrar pra outras pessoas a minha imagem feia e suja?”.

Além das tintas, que se misturavam em copos descartáveis formando novas cores, haviam revistas, cartolinas coloridas e tecidos como recursos. Aos poucos os alunos se firmavam no papel, algumas vezes com inusitadas cores na pele ou em ações um tanto curiosas, como o auto-retrato criado em cima de um mar repleto de peixinhos. “A minha está num ponto de ônibus”, conta Lícia Maria, aluna da ELC desde 2009 que, no papel, trajava um elegante vestido bege.

Tarefa finalizada e a roda novamente formada, dessa vez com uma porção de mãozinhas sujas de tinta e cola. O segundo exercício do dia propunha a construção de um outro auto-retrato, através de outros “ângulos”: a cor predileta, a pessoa famosa que eles gostariam de ser, o prato de comida que eles mais gostam, o animal preferido e o objeto que eles seriam se pudessem escolher. “A ideia é usar todos esses símbolos pra construir uma imagem de si próprio que não seja uma imagem física, mas uma imagem simbólica. Pra que eles comecem a ter uma percepção abstrata de que o “eu” é uma coisa muito mais ampla”, expõe Raphael, lembrando do aluno do turno da manhã que, exibindo uma enorme foto de Roberto Carlos, alegou querer ser o cantor devido ao afeto que a família deposita nele. Quanto ao objeto, o menino trouxe de casa uma moeda dos anos 70, com a qual havia sido presenteado por sua mãe. “A gente encontra desejos neles. Uma relação com os objetos e com as pessoas de uma maneira que a gente não pensa”, declara o professor.

Antes da vez à voz dos presentes na roda, o acordo foi estabelecido: “Todo mundo deve ouvir todo mundo falando”. E, sem deixar que dois elementos atrapalhassem o andamento da atividade, Raphael logo declarou: “Antes de vocês entrarem aqui na Escola Livre de Cinema, duas coisas vocês tem que deixar na rua: preguiça e vergonha. Isso vocês não podem ter aqui de jeito nenhum , senão nada dá certo”.

Dentre os nomes mencionados, surgiram Ronaldinho Gaúcho, Gisele Bündchen, Filk, Petkovic, Leonardo da Vinci e os cantores Belo e Latino. E a diversidade de objetos não ficou por menos: sabonete de rosto, pipa, caderno e até uma caixinha de biscoitos em forma de canudinhos, trazida por Elion Lima, que justificou: “Elas são feitas de papelão. E o papelão também é feito de papel. E o papel é feito do eucalipto. E eu queria ser uma árvore de eucalipto, pra poder ser cortada com o machado, virar o papel e depois ser reciclado”, disse o menino de apenas 10 anos, para admiração dos professores e colegas.

Para acompanhar o momento, a sala de animação recebeu Cleber Ezequiel Corrêa, pai de Hebert, de 9 anos, que pela primeira vez participava de uma aula na ELC. Após acompanhar com alegria o desenvolvimento da atividade na roda, o pai declarou animado: “Eu não sabia que eles trabalhavam com pintura também. É muito importante. O Hebert gosta de desenhar e de pintar. Depois eu vou perguntar a ele como que foi, se ele gostou”.

“Na segunda semana a gente já vai partir pro tridimensional. Serão outras dificuldades, outros resultados e outros raciocínios”, já antecipa Raphael Couto. “Quando eles forem para o outro momento trabalhar o vídeo, eles já terão essas referencias visuais como vocabulário”. “A gente tá fazendo um making of de tudo. A ideia é que além dos filmes tenha o making of de 2010”, garante a coordenadora Veruska, responsável pelas atualizações no blog da ELC, o escolalivredecinema.blogspot Lá, o desenvolvimento das novas atividades poderão ser acompanhadas “de perto”. Para ver mais fotos da aula de ontem, acesse o Flickr do Cultura NI.

0 Comentários:

Postar um comentário

 
 
 
 
Direitos Reservados © Cultura NI