A herdeira do imaginário popular

segunda-feira, 28 de junho de 2010

por Josy Antunes / Fotos: Claudiano Vasconcelos e Josy Antunes

Sob o Sol forte de uma manhã de domingo, mais um dia de tradição em Areia Branca, Belford Roxo, se firmava. Lonas se espalhavam pelo chão e por estruturas de madeira. Sobre elas, distribuíam-se as mais diversas mercadorias, numa forma de organização entre vendedores e frequentadores característica da mais popular feira da região. Compondo o cenário é possível distinguir peças para encanamento, fitas cassetes, aparelhos eletrodomésticos, discos de vinil, porcos, peixes vivos, peixes mortos, cachorros, celulares, objetos antigos, artigos medicinais, brinquedos, frutas, pastel e caldo de cana. “Até mulher se botar aí vende”, brinca Roberto dos Santos, tomando conta da venda do tio, que chamava atenção por conter uma original Lambreta preta. “Eu tenho 41 anos, essa feira deve ter uns 60. Aqui você encontra tudo o que você quiser, pode ter certeza”, garante, oferecendo uma câmera analógica profissional que, segundo ele, fora presente de uma antiga patroa.

Em busca da diversidade e excentricidade encontradas no local, Érika Nascimento, que cursa o 8º período de Cenografia da Escola de Belas Artes da UFRJ, aponta a feira como lugar de memória dos habitantes do bairro, dos frequentadores e dos feirantes. O tema foi escolhido como base da pesquisa que há 6 meses vem desenvolvendo para a disciplina Psicologia Aplicada às Artes Cênicas, cuja orientação está a cargo da Prof. Dra. Phrygia Arruda. “Como a pesquisa da monitoria é sobre resgate de memória e educação patrimonial, a gente tá trabalhando sobre o resgate da feira de Areia Branca como identidade cultural pra Belford Roxo”, explica Érika, que foi liberada por um dia do estágio que realiza aos finais de semana no MAC – Museu de Arte Contemporânea, em Niterói – para execução da pesquisa de campo.

A primeira visita à feira, já com o intuito inicial da pesquisa, aconteceu ainda no ano passado, quando as primeiras fotografias foram feitas e mostradas à Dra Phrygia. “Ela achou legal eu continuar essa pesquisa sobre a minha cidade, que quase ninguém conhece”, conta a estudante – moradora do bairro vizinho, Heliópolis – acrescentando que parcos foram os registros encontrados, tanto em livros, quanto na internet, sobre a feira. Um dos registros, nada confiável, foi encontrado no site Desciclopédia – uma paródia do Wikipedia – e o outro no próprio Wiki, onde a descrição do ponto em Areia Branca se limitava a um parágrafo que mencionava à multiplicidade de seus produtos.

“A feira é boa, é calma. Dá pra gente arrumar um dinheirinho pra levar pra casa”, segredou Maria Regina Sobrinho Monteiro durante a entrevista concedida a Érika, que se via diante de uma barraca repleta de bonecas para todos os gostos. A feirante e dona de casa contava, com o mesmo carinho que dedica às suas bonecas, sobre sua rotina de trabalho ao lado do marido. “Quanto tempo essa feira tem, Edson?”, indagou ela, virando-se para o lado direito. “A feira? A feira tem mais de 50 anos!”, respondeu o senhor de bigode, com tom de obviedade. Diferente do esposo, que tem seu ponto de venda na feira há mais de duas décadas, há 10 anos Maria Regina dedica-se ao mesmo ofício: comprar bonecas em mau estado de conservação, restaurá-las e revendê-las. “Muitas crianças não têm como comprar boneca cara, então eu trabalho mais pra ajudar as crianças”, justifica ela, que se preocupa até em costurar novas roupinhas. Em época de Copa, algumas das bonecas trajavam verde e amarelo. “Eu compro elas sujas, como estão ali”, ilustra, apontando uma sacola de bonecas encardidas. Em cada uma delas, Maria Regina investe R$1. A venda fica em torno de R$3 a R$5. E o faturamento em cada dia de feira é de, em média, R$50. A pequena empreendedora relata ainda sobre a expansão da feira, que acompanhou ao lado do Sr. Edson. “Ela era bem pequenininha, agora já está lá no valão”, admira-se.

Os feirantes, que antes se limitavam à Estrada Mineira, agora beiram o rio que perpassa o bairro e aos poucos ocupam também as ruas transversais. Os fregueses se apertam com sacolas e bicicletas entre os pequenos corredores, devendo tomar cuidado para não pisar nos produtos do chão. “Eu cheguei em 1961. O trem ainda passava aqui”, relembra, apontando para trás o senhor de 83 anos, proprietário de uma barraca de temperos. Acompanhado da esposa, a dupla é uma das mais antigas e reconhecidas na feira. “Todo mundo respondeu que a feira têm aproximadamente 50 anos. E falaram também sobre a estrada de ferro, que é uma coisa que eu não sabia”, menciona Érika, fazendo apontamentos sobre as curiosidades presentes nas entrevistas. O extinto trem em questão pertencia à Estrada de Ferro Rio d’Ouro, construída em 1875, com o objetivo de “auxiliar nas obras de construção das adutoras para o abastecimento de água para a cidade do Rio de Janeiro”.

Em pleno calor de meio dia, o quiosque de Lindalra Galdêncio ferve soberano entre os demais. “Bolinho de aipim, joelho, bolinho de queijo, bolinho de carne, bolinho de carne seca, coxinha e risole”, enumera a feirante, além, é claro, do requisitado caldo de cana. “Não é a minha única fonte de renda. Mas a melhorzinha é aqui”, esclarece Lindalra, que conta com a ajuda do marido, das duas filhas e, de quebra, emprega dois funcionários. “Estamos aqui todo domingo. Só que eu trabalho muito mais, porque eu fico a semana toda fazendo os salgados”, explica ela, que há apenas dois anos comprou o ponto de um antigo feirante. A intimidade com a feira, porém, se deve ao fato de ter sido uma “pequena” frequentadora do local. “Meu pai trabalhou aqui há muitos anos. Durante 10 anos”. Feliz com o trabalho que reúne a família, Lindalra fez questão de posar com o marido para uma fotografia e de que a filha participasse do vídeo trajando o uniforme do quiosque e mostrando o processo de preparação do caldo de cana. Enquanto Érika explicava sobre os resultados de sua pesquisa e instruía sobre a localização do Centro Cultural Donana, onde o pequeno documentário será exibido, era possível ouvir o curioso anúncio: “O morango que vira bolsa! Bolsa que vira morango!”. É que, ao lado do point de Lindalra, o ex-motorista de ambulância, Sr. Sidney, batalhava por seu espaço com suas miudezas. “É difícil você achar um lugar pra botar uma barraca”, alerta ele, feirante local há 7 anos, presenteando a equipe de Érika com um chaveiro do Brasil.


Mais adiante, saindo da linha ocupada pelas barracas, por trás de uma pilha de cana moída, outra de copos descartáveis usados, logo atrás de uma série de caminhões de carga estacionados e de algumas caixas de madeira, encontra-se, religiosamente a cada quarta-feira e domingo – dias certos para funcionamento da feira – o Sr. Antônio Bernardo Filho. “Isso aqui foi um ponto que eu plantei, não tinha. É escondido, mas eu tenho minha freguesia”, garante o aposentado, que frequenta a feira há cerca de 50 anos. “Eu fui nascido e criado em Mesquita, mas desde criança meu pai me trazia aqui”, compartilha ele, citando a lembrança do casal de idosos responsáveis pelos temperos. “O que mudou?”, indaga Érika, recebendo uma resposta direta e bem-humorada, como toda a conversa com Antônio. “Tem mais corrupção agora”. Fazendo uso das grades de um estacionamento para pendurar suas pipas, o “Sr. Pipeiro” ousa dizer, aos risos: “Eu não vivo disso. Isso aqui é pra eu não ficar perturbando a mulher em casa”. E, provando a fidelidade que atribuiu aos fregueses, meninos de vários tamanhos interrompiam a entrevista para saber dos preços. “Vendo pipa e linha. Quando as crianças não têm dinheiro, eu dou também. Não posso é dar tudo. As pipas grandes eu faço”, afirma, apontando para aquelas que oferecem maior oportunidade de lucro. “Eu não tenho é paciência pra fazer as pequenas”.

“O que me pegou de surpresa, que eu não sabia, é que a minha família foi uma das fundadoras da feira”, depõe Érika, sobre as descobertas feitas durante o processo de pesquisas no decorrer do semestre. “O meu avô, quando chegou no Rio de Janeiro, aqui em Belford Roxo, montou uma barraquinha na feira como uma fonte de renda. Junto com a minha madrinha e com os filhos dele, ele vendia banana, laranja... E a minha madrinha falou que fazia bordados e vendia aqui. Com o trabalho eu fui descobrindo essas coisas. Belford Roxo tem a sua cultura, tem o seu jeito de ser”. Após o passeio por toda a quase infindável feira, o estudo se mantém pelas mãos da moça. Além da exibição do filme e da integração com o Centro Cultural Donana, que pertence a sua família, Érika partirá para o trabalho envolvendo o imaginário infantil sobre a feira e a cidade. A primeira etapa, intitulada “A Feira de Areia Branca e o Imaginário Popular de Belford Roxo”, será apresentada por Érika, na UFRJ, na próxima segunda-feira.
O blog da Érika é o tricotandoarte.blogspot.com


6 Comentários:

Erika Nascimento disse...

Obrigada Josy!!!
Adorei a matéria...

Agradeço também pela participação durante a gravação ontem embaixo do sol da manhã na Feira.
Vamos mostrar o quê existe em Belford-Roxo. Que têm cultura aqui, memória e deve ser preservada.

Vagner Nascimento disse...

Quanto custava o caldo de cana? Dá pra pedir por telefone? :) Muito boa a matéria, parabéns pra Erika e pra Josy pelo texto.

Anti Cinema disse...

Vwndo uma casa no Farrula.

Então...Muito legal e importante tua iniciativa, menina...Você deveria ter conversado também, com o senhor que vende artigos de até 1,99...Coisitas tais como: pregadores de cabeça (piranhas), pregadores de varal, lixas e todo tipo de buginganga para mulheres e para o lar...O que é interessante nele é o jargão...Que ando usando aqui em casa, para deleite de meus sobrinhos - Aindaaaaaaaaaaaa têeeemmmmm...Tem sim...Pregadooor pra roupa naummmmm cairrrrrr do varal - sui generis é o jargão e sua voz...Mas impagável mesmo é a sua iniciativa...

Os migrantes nordestinos, que chegaram a Baixada Fluminense, aos montes (principalmente em D. caxias, Belford Roxo e Nova Iguaçu), eram os trabalhadores das feiras (que remontam as atividades de muleiros que atravessavam rios e matas - dominados pelos jacutingas, quer sejam os escravos fugidos e malocados em mocambos quer sejam os nativos e autoctones habitantes da região, os indigenas jacutingas - para levar produtos agrícolas aqui produzidos) que passaram a habitar a beira do rio botas...Alí pertinho do final da feira - as ruas margem esquerda e direita - que de tanto ouvirem seu forrozinho...Acabaram por influenciar a galerinha da região a fazer musica que evoluiu até o Reggae, dando origem ao Cidade Negra (Lumiar) e ao Negril (KMD5)...

Outro dado importante e tomara que te sirva: o locador das bancas era o Miguel (que mora e tem família na imediação do Hospital Infantil), depois passou para o atual locador (não sei o motivo) que tem depósito em fte a rua do Colégio Estadual Presidente Kennedy e mora algumas casas após a Igreja Nova Vida, na rua Amaral (Rua do Armazem a Feira de Areia Branca, que foi do Sr Américo e hoje é admistrado por seu filho o Zé Américo, que por sinal é pai de Historiador/professor...Ele deve ter fotos e muito a lhe dizer...

Eu, Sylvio Neto, (www.bloggdosylvioneto.blogspot.com) cansei como pessoa e como agente...Mas...Vibro com a força e a jovialidade com que te empurra nesta...

Abraços e sucesso na árdua tarefa de fazer e multiplicar cultura

Desculpe nome da rua é Jesus Castor e não Amaral
sn

Erika Nascimento disse...

Obrigada mesmo pela dica!! É de grande importância para o trabalho.
Vou entrar em contato com este senhor para fazer uma entrevista.

Abraços

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